23.5.14

Uma fome de "não sei o quê".



Eu nem sabia que também poderíamos morrer de tanto querer.
Da primeira vez que a vi, achei que estava com fome. Acertei! Conheço cara-de-fome de longe.

O problema era o tipo de fome que sentia. Tinha fome de tudo e de nada. Queria o Mundo, talvez o Universo, tudo, num instante só. Às vezes só queria, nada especificamente, parecia ser apenas um desejo, uma vontade não sei de quê, que jamais poderia ser satisfeita. Outras vezes queria tudo o que não poderia querer: queria o céu do meio-dia e a lua, cheia, à meia-noite. Queria todos os opostos e contrapostos, queria a dor do prazer a inutilidade do dizer. Queria também não ter que dizer, sentir apenas e, assim, ser atendida. Era seu vício. Difícil.

Nos conhecíamos desde pequenas e já naquela época ela me disse da fome que sentia. Quando bebê, chorava muito e o leite de sua mãe não lhe agradava em nada, diga-se de passagem. Me contou que a pobre mãe, que não sabia o que fazer, jovem que era, chorava também. E, para vocês verem o que é instinto materno, foram as lágrimas da mãe que a alimentaram.

Eu, que sempre fui comilona, nunca a entendi. Confesso que me impacientei algumas vezes quando a vi com tanta fome e sem saber o que queria comer. Na contradição, nos tornamos amigas, confirmando o velho Blake.

Claro que nossa principal diversão era comer. Vez ou outra comíamos bolhas de sabão, não eram lá muito saborosas, mas depois de uma boa refeição voávamos juntas - furta-cores - até que, num estouro voltávamos para casa, correndo e querendo não levar um 'carão' das mães. Comíamos de tudo: sopa, feijão e livros. Lambíamos baterias e sorvetes de chocolate. De tudo o que fazíamos juntas, o que eu mais gostava era de beber água da chuva para, em seguida, mijar rios inteirinhos!

Em compensação, detestávamos dormir, isso tínhamos em comum. Dormir é importante! - advertiam nossas mães. Ela, surpreendentemente mais paciente que eu, me mostrou que poderia ser até divertido, se soubéssemos como fazer, é claro! Morri tantas vezes que desta vez, já nasci com medo da morte e dormir, definitivamente parecia com morrer.

-Não vejo diversão em dormir! - protestei.
-Isso é porque você não prova os sonhos. - respondeu.

Foi assim que aprendi a sonhar. Juntas conversávamos sobre todos os nossos desejos, vontades e quereres, então sonhávamos. Comíamos cada pedacinho solto de sonho com hashis que fizemos da beliche em que dormíamos juntas o sono da tardinha, e assim crescemos saudáveis, de tanto comer sonhos.

Minha família e eu nos mudamos e não a vi por muito tempo, nos correspondíamos apenas e em suas cartas me contava sobre os muitos sabores das cores, em especial do gosto ruim que tem o marrom, parece terra, ela disse. Na verdade não gostava lá de muita coisa, era exigente e queria sabores nunca antes experimentados, coisa difícil de se achar num supermercado.

Da última vez que a vi estava magra, quase esquelética. Fui visitá-la, levei um beijo e um sonho, não um beijo ou um sonho qualquer, mas aqueles que eu sabia que eram seus preferidos, beijinho de coco e sonho recheado com chocolate. Comeu pouco, acho até que apenas os cheirou, mas cheirava com tanta intensidade que as coisas secavam. Tocava com tanto querer, olhava com tanto desejo que se consumia a si mesma de tanto querer aquilo que não tinha.

Morreu, tadinha.

Morreu sem ter o que desejava, incapaz que era de pedir o que queria, ficou faminta, desnutrida. Morreu, enfim.

Depois de morta, pensou "Que alivio! Agora acabou!"

Morta como estava pensou até que aquele gosto de satisfação fosse um devaneio de fantasma, pena que ela nunca acreditou em fantasmas... Então sumiu, conformando-se com o insaciável desejo de "não sei o quê".





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